O engenheiro aeronáutico Jayme Boscov morreu ontem, em Tietê (SP), aos 87 anos. Ele formou-se pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em 1959, e recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico em novembro de 1996 do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Boscov trabalhou na França por 10 anos, no desenvolvimento de mísseis para as empresas Matra e Aerospatiale. O engenheiro foi responsável pelo programa do Veículo Lançador de Satélites (VLS) e deu importante contribuição para o desenvolvimento tecnológico do país.
“É uma grande perda. Quando cheguei no DCTA, em 1969, aos poucos me tornei amigo do Boscov. Meus filhos cresceram com os dele”, afirma Manoel Oliveira, presidente do Conselho de Administração do INVOZ. Boscov foi bolsista do governo francês em 1960, de onde foi integrado na Société Nationale d’Études et Construction de Moteur d’Aviation (SNECMA), na divisão de Engenhos Espaciais, Estudos Avançados. Participou ativamente do programa de desenvolvimento de lançadores até 1967, quando ingressou em uma das equipes de desenvolvimento do avião supersônico Concorde. Após 10 anos trabalhando na França, Boscov retornou ao Brasil para sedimentar o programa de Pesquisa e Desenvolvimento de Foguetes em fase inicial na época no Centro Técnico Aeroespacial (CTA).
Formou e liderou a divisão de Projetos de Foguetes durante 22 anos, entre 1969 e 1991. Projetou e desenvolveu os foguetes de sondagem Sonda III, Sonda IV e o Veículo Lançador de Satélites (VLS) até 1992. Coordenou programas de cooperação internacional com organizações da França e Alemanha, na área de lançadores, o que possibilitou a formação de recursos humanos em mecânica orbital, antenas para lançadores, recuperação de cargas úteis no mar e gerenciamento de grandes projetos espaciais. Se aposentou em 1995, passando a prestar serviços para a Agência Espacial Brasileira (AEB) até 1998.
Boscov foi eleito membro da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) em 1989 e foi nomeado Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico por sua contribuição científica para o desenvolvimento do Brasil em 1996, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Além disso recebeu, do Ministério da Aeronáutica, as medalhas do Mérito Santos Dumont em 1970; Mérito Aeronáutico Grau Cavaleiro em 1978, Grau de Grande Oficial em 1986 e Grau Comendador em 1995; além da medalha da Ordem do Mérito das Forças Armadas em 1989.
Em 2003, ele falou ao Jornal do Engenheiro sobre o acidente com o terceiro modelo do VLS ocorrido naquele ano, suas prováveis causas e os motivos das dificuldades do programa até aquela época. Veja a entrevista abaixo:
O que houve com o programa espacial brasileiro?
O início, nos anos 70, foi muito favorável. Na primeira fase, desenvolveram-se os foguetes Sonda I, II e III. Na segunda, a proposta era fazer um foguete com sistema de controle que pudesse ser automaticamente pilotado, o Sonda IV. Procurou-se desenvolver todas as tecnologias básicas necessárias ao desenvolvimento do lançador de satélites. Começamos também um grande relacionamento internacional, especialmente com a Alemanha, o que nos permitiu construir um laboratório de propulsão. Em 1984, voou o primeiro Sonda IV. A partir daí, deveríamos ter um crescimento, mas ocorreu o contrário e até hoje vivemos essa trajetória descendente.
Nessa época, as verbas começaram a escassear e o programa, antes florescente, passou a decair…
O orçamento é ridículo, mas não adianta achar que o dinheiro resolve tudo. Não havia consistência no programa. O projeto VLS nasceu em 1980, em 1982 foi sedimentado e o primeiro protótipo voou em 1997, o que é muito tempo. O fundamental é que não houve vontade política do Governo para que fosse um grande projeto nacional. Ficou restrito à Aeronáutica. O desenvolvimento ficou em cima do CTA (Centro Técnico Aeroespacial). Não conseguimos, já na segunda fase, estabelecer uma organização que tivesse o chamado arquiteto industrial, responsável pelas fabricações em outras empresas e que fosse um integrador. O Governo teria que investir e ter um programa com continuidade em que se garantisse pelo menos cinco anos à frente.
O que houve com o programa espacial brasileiro?
Também não superamos a fase artesanal, muita coisa depende da pessoa que está fazendo e não de um procedimento, que foi exaustivamente comprovado e onde nada se faz sem a documentação técnica.
O programa sofreu também com a falta de recursos humanos?
Chegamos a ter 1.300 pessoas. Depois, houve um gap de quase dez anos na contratação. Hoje, os engenheiros que projetaram o VLS e qualificaram o sistema são os mesmos que foram operar o veículo lá em Alcântara, quando deveria haver uma equipe só para o lançamento. Além disso, recebem salários baixos, às vezes ridículos.
Um país que não tem alta tecnologia sempre será escravizado, disse Jayme Bosco em entrevista ao Jornal do Engenheiro, em 2003.
Diante de tantas dificuldades e todos os problemas do Brasil, faz sentido um programa espacial?
Um país que não tem alta tecnologia sempre será escravizado. Ou o Brasil continua esse programa porque quer ser independente nos lançamentos, quer ter uma cultura espacial que possa seguir o que os outros estão fazendo ou por motivos estratégicos. O fundamental é definir uma política espacial, que siga independentemente do partido que estiver no poder. Vamos fazer o Fome Zero, mas não esqueçamos as outras questões.
Com a investigação do acidente, esses problemas virão à tona?
Espero que não se olhe apenas o acidente, mas tudo que ficou para trás. É preciso uma análise profunda de como se chegou a isso. Por que havia 23 pessoas lá e o que cada um estava fazendo? Nada acontece do dia para a noite, há uma seqüência de eventos que levaram a isso. Eu descarto totalmente a hipótese de sabotagem. A sabotagem, ainda que não propositadamente, foi contra a política espacial brasileira