Neide Pereira Pinto – um voo pela minha história

Nasci sozinha – claro que minha mãe estava presente! Até meu pai selar um cavalo, sair em disparada e retornar com a parteira, eu e minha mãe já tínhamos resolvido a questão. Quando chegaram me encontraram aos berros e nascida.

Meu pai nasceu em 1918, e minha mãe, em 1921. Casaram muito novos e tiveram nove filhos, sendo duas falecidas na chegada ao mundo e uma adotiva. Sou a caçula.

Em uma família com tantos filhos para criar, começamos a trabalhar cedo para ajudar nossos pais. Ninguém tinha privilégios, nem mesmo a caçula, que, normalmente, é a mais mimada. Por isso, aos sete anos tive meu primeiro emprego: trabalhava para meu irmão mais velho. Ajudava a tirar o leite e auxiliava minha cunhada nos serviços da casa.

Meu pai sempre foi uma pessoa empreendedora e criativa. Para o estudo de seus filhos mais velhos, ele construiu uma escola ao lado de nossa casa, legalizou na prefeitura, e trouxe a professora para morar conosco. Dessa forma, meus irmãos estudavam um período e ainda sobrava tempo para o trabalho. Além de minha família, ele deu a oportunidade de estudo para todas as crianças do bairro. A escola existe até hoje próxima ao sítio onde nasci.

Nessa época não existia luz elétrica, a noite era iluminada por lampião ou lamparina. A primeira professora que se hospedou em casa, dona Dora, vivia reclamando porque não conseguia ler à noite. Meu pai pediu para ela comprar um livro sobre usina hidrelétrica. Em pouco tempo, minha família tinha uma usina particular e a casa iluminada. Ele construiu um sistema engenhoso de alavanca para, de nossa casa, abrir e fechar a comporta da usina, que ficava a uns 500 metros de distância.

Movida pela curiosidade sobre a vida além das porteiras do sítio, saí de casa aos onze anos, para morar na cidade e continuar os estudos. Quando concluí o segundo ano do ensino médio, de férias no sítio, recebi a visita de uma amiga e colega de turma. Sua família ia passar uns dias em São José dos Campos para procurar trabalho e escola para os filhos, com a intenção de morar na cidade.

Quando cheguei a São José dos Campos, em 1976, fiquei hospedada em um sítio no bairro do Putim. Para chegar até lá, passava em frente à Embraer. Esse foi meu primeiro contato visual com a empresa. Posso dizer que foi paixão à primeira vista pela Embraer e pelos aviões.

Findos os dias de férias, o balanço foi o seguinte: apenas eu tinha conseguido escola, trabalho e um lugar para morar. A família de minha amiga Luciana voltou para Cunha.

Um passeio de alguns dias transformou-se em mudança definitiva para São José, e trabalhar na Embraer passou a ser meu objetivo.

Seis meses depois de minha chegada, dei o primeiro passo rumo à realização do sonho de trabalhar na Embraer. Fui trabalhar no então Centro Tecnológico de Aeronáutica (CTA), no Departamento de Física. Nesse período iniciei a faculdade de física em Taubaté (SP) e consegui ser a primeira aluna mulher do ITA, oficialmente autorizada a fazer três matérias na cadeira de física.

Não prossegui com a faculdade de física por entender que não era essa minha vocação, apesar de querer ser astrônoma. Resolvi estudar línguas e fazer um curso de secretariado para melhorar meus conhecimentos e o salário na profissão que já exercia. Buscava amadurecimento antes de escolher uma profissão definitiva e também fazer uma poupança para pagar uma boa faculdade.

Deu certo. De minha chegada a São José dos Campos, em 1976, até o dia em que recebi uma ligação do RH da Embraer foram cinco anos.

Até hoje me lembro daquele dia. Trabalhava numa empresa de grande porte quando o telefone tocou e a pessoa se identificou como sendo do setor de RH da Embraer. Nesse momento meu coração acelerou só de pensar que aquela chamada poderia ser a realização de meu sonho.

E era! Após alguns minutos de entrevista em português, inglês e francês, a pessoa, não lembro o nome, disse-me que eu estava aprovada para uma vaga temporária na Embraer, e perguntou se eu trocaria um trabalho fixo por outro que duraria apenas quatro meses, o tempo da licença maternidade da funcionária que ocupava o cargo.

Não tive dúvidas! Imediatamente disse sim e pedi minha demissão.

Quando cheguei para meu primeiro dia de trabalho, para minha surpresa, fiquei sabendo que meu chefe, o Eng. Michel Cury, passaria um mês na França trabalhando na subsidiária EAI.

Como era nova na Embraer e ninguém me conhecia, os primeiros dias foram de apresentações e alertas, principalmente sobre meu futuro chefe. O perfil que me passaram foi preocupante: bravo, exigente, pavio curto, impaciente com perguntas óbvias e assim por diante. A essa altura já estava preocupada se tinha ou não feito uma boa troca. Mas não dava para voltar atrás.

Como sempre digo, tenho um bom anjo da guarda de plantão, e daquela vez não foi diferente. Quem estava substituindo o Eng. Michel em sua ausência era o Eng. Paulo de Machado e Silva Furtado, o Eng. Furtado. Ele era o assessor direto do Eng. Michel, portanto profundo conhecedor do setor e de todos os assuntos da Gerência de Assistência Técnica (COT), além de ser uma pessoa com extrema paciência e boa vontade. Naquele período ele foi, para mim, um professor e um bombeiro.

Professor porque me explicou e ensinou a rotina da gerência; um bombeiro, porque me ajudava a apagar todos os incêndios que o Eng. Michel mandava lá da França. Quando o Eng. Michel retornou, já estava mais segura e isso me ajudou muito. Talvez, se não tivesse feito o estágio com o Eng. Furtado, teria dificuldades para acompanhar seu ritmo acelerado de trabalho e seu brilhante raciocínio.

Meu primeiro aperreio com o Eng. Michel foi para atender um pedido um tanto inusitado, e sem o auxílio do Eng. Furtado, que também não estava na COT. Ele pediu para eu ligar para o Batata e informá-lo de que a aula de ballet estava confirmada, e ele deveria levar a sapatilha cor-de-rosa. Procurei na agenda de telefones e não encontrei nem o Batata, nem o professor de ballet. Perguntei para várias pessoas e ninguém pôde me ajudar porque não sabiam. Por sorte, quando estava quase arrancando os cabelos, chegou o Eng. Furtado, que logo notou minha cara apavorada.

Contei a ele e, em resposta, ouvi uma sonora gargalhada. O Batata era o amigo que jogava tênis com o Eng. Michel, e o professor de ballet era o professor de tênis. Nunca mais esqueci esse fato pelo apuro que passei e também porque plantou uma dúvida quanto ao perfil que tinha construído do Eng. Michel. Talvez ele não fosse tão “fera” assim… Uma pessoa capaz de brincar era um bom sinal.

Aos poucos ganhei sua confiança e me adaptei a seu estilo desafiador. Passei a respeitá-lo em vez de temê-lo, e com isso entramos em sintonia. Posso dizer com toda certeza que aprendi a trabalhar com o Eng. Michel, ou melhor, aprendi a gerenciar e resolver problemas com ele. Sempre me incumbia de alguma missão quase impossível, sem ao menos me perguntar se sabia ou não fazer ou se daria conta de resolver.

Às vezes, quando atravessava minha sala para entrar na dele, me pedia para fazer um relatório sobre um problema técnico que tinha acontecido na aeronave de algum operador da França e acrescentava, com muita naturalidade, que era para fazer em português e em francês. Dizia que precisava do relatório para o dia seguinte e entrava como se nada tivesse acontecido e me pedia um café.

No dia seguinte, quando levava o relatório para ele assinar, não lia, não perguntava como eu tinha conseguido fazer, simplesmente assinava e pedia para eu enviar para o operador. Este era seu estilo de trabalhar: confiança total, mas implacável com os erros.

Ainda tenho viva na memória a primeira e única bronca que levei do Eng. Michel. Era de minha responsabilidade fazer o pagamento das faturas de combustível das aeronaves e alocar as despesas no centro de custo da Seção de Operações. Nesse dia troquei o centro de custo, nada muito grave, mas a bronca foi para nunca mais cometer outro erro.

Quando venceu o tempo da licença maternidade de Toninha, ela decidiu não voltar para seu posto na Embraer. Com isso tive a chance de concorrer à vaga juntamente com as demais secretárias que também postulavam ao cargo.

Para ser totalmente isento, o Eng. Michel não participou do processo seletivo, delegou a função ao Eng. Garcez. Fui a selecionada e, com isso, tive a oportunidade de trabalhar com ele até sua transferência para a subsidiária da França.

Em seu retorno para o Brasil como Diretor Comercial, em 1992, mesmo estando em outro setor, às vezes ele me chamava para fazer algum trabalho. Com isso, mantivemos o contato e a amizade.

Profissionalmente o Eng. Michel não era de longos discursos ou de grandes teorias, era muito objetivo em suas colocações e decisões. Transmitia segurança para as pessoas que trabalhavam com ele, as quais, assim como eu, transformavam a primeira impressão de uma pessoa rigorosa para o respeito a um profissional altamente qualificado e que amava o que fazia. Trabalhar com o Eng. Michel foi um desafio gratificante e um aprendizado muito grande. Continuei na Assistência Técnica trabalhando com o Eng. Furtado, que foi promovido ao cargo de gerente. Outra pessoa espetacular, com quem também aprendi muito, principalmente a ter calma e tranquilidade para enfrentar as situações difíceis.

Nessa época já me sentia madura para pensar em minha formação. Escolher a arquitetura foi prevalência do DNA de meu pai, que projetou e construiu muitas casas durante sua vida, mesmo nunca tendo estudado.

Antes mesmo de me formar em arquitetura, fui convidada pelo Mário Galvão para trabalhar na área de comunicação e aproveitar parte do meu TCC (Trabalho para Conclusão de Curso) e fazer o primeiro Centro Histórico da Embraer e o Parque Aeroespacial do SESI Ozires Silva de São José dos Campos.

Assim que me formei, fui transferida para a área de Engenharia de Fábrica, setor responsável pelos projetos e manutenção dos prédios da Embraer. Fui trabalhar com o Eng. Quintino. Trabalhei muito tempo no desenvolvimento de layouts dos escritórios e dos hangares de produção de aeronaves.

Quando tudo parecia às mil maravilhas e minha vida estabilizada, a crise bateu às portas da Embraer. A empresa foi privatizada, e muitas pessoas, demitidas. Saí em 1996 para abrir uma empresa de arquitetura e continuar a fazer meu trabalho, agora como empresa prestadora de serviços.

No início, além da Embraer, fui chamada pela Infraero Brasília, onde meu antigo chefe Mário Galvão estava trabalhando, para desenvolver projeto e fazer a implantação de Centros Culturais nos aeroportos da rede e reativar a revista de história em quadrinhos Aerogibi, que tinha criado junto com o projeto do Parque Aeroespacial do SESI.

Durante os dez anos de prestação de serviço para a Embraer, a Somos Editora ganhou vida e, em paralelo ao trabalho de arquitetura, publicou vários livros nos segmentos de história, cultura, meio ambiente e educação para o trânsito. Após encerrar o contrato com a Embraer da empresa de arquitetura, mantive a parceria ativa com a Somos Editora, para publicar livros sobre aviação.

Além do trabalho profissional, gosto do voluntariado. Considero que sou uma pessoa privilegiada e que o plano espiritual abriu muitas portas para mim, então tenho que retribuir todas as graças recebidas de alguma forma.

Minha estreia foi no Hospital Francisca Júlia em 1982. Depois do primeiro trabalho realizado, nunca mais saí de lá. Luiz Peagno, diretor do FJ, sempre diz que tem um quarto especialmente reservado para mim. Confesso que não faço questão dessa retribuição.

Estive como diretora cultural na APVE – Associação dos Pioneiros e Veteranos da Embraer durante oito anos, e agora, no INVOZ, como diretora-presidente.

Exceto o trabalho de arquitetura e de editora que faço para o Francisca Júlia, toda minha trajetória profissional e pessoal sempre esteve ligada ao avião e à Embraer. Costumo dizer que saí da Embraer, mas a Embraer e o avião nunca saíram de mim desde minha chegada, por acaso, a São José em 1976.

Tenho orgulho da vida que vivi e ainda vou viver, porque meu espelho sempre foi minha família, principalmente meus pais. Pessoas simples que souberam criar seus filhos dando exemplos práticos de honestidade, ética e respeito ao próximo. Tenho orgulho dos bons amigos que encontrei em minha trajetória. Tenho orgulho da relação de amor e parceria com o Sergio, que consegue dividir sua vida comigo em harmonia.

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