Acervo histórico: Boeing x Airbus – o duelo dos gigantes

Por: Roberto Pereira de Andrade.

História, ciência, tecnologia, defesa, aviação, espaço. Não havia fronteiras para explorar o conhecimento e nem barreiras para torná-lo público para o jornalista Roberto Pereira de Andrade (1940-2015).

O Invoz, em parceria com Marisa Lucchiari, assessora de Roberto Pereira durante 30 anos e detentora dos direitos autorais de seu acervo, republicará matérias escritas por esse grande profissional em sua homenagem.

BOEING X AIRBUS – O DUELO DOS GIGANTES

Nunca, na história da aviação, o mercado global foi tão claramente liderado por dois grupos industriais que se equivalem nos meios e na tecnologia. Mas também nunca eles precisaram tanto dos clientes como agora. Segundo os analistas, a norte-americana Boeing e a europeia Airbus Industrie fornecem hoje mais de 90% de todas as aeronaves civis de 130 ou mais lugares. Só as duas têm meios para fazer os investimentos bilionários sem os quais tais aeronaves não poderiam ser projetadas, ensaiadas e fabricadas em série, ou  tecnicamente apoiadas na hora do uso.    

Nada espelha melhor esse equilíbrio de forças que as previsões anualmente atualizadas que os dois grupos  publicam, avaliando o tamanho do bolo e das fatias que cada um espera ter na sua divisão. São análises cuidadosas que levam em conta o crescimento da demanda e das companhias aéreas, a necessidade de substituir as  aeronaves mais antigas e as oscilações ditadas por fatores externos como o preço dos combustíveis, o crescimento econômico de cada região do planeta, guerras, catástrofes naturais e problemas com a infraestrutura de apoio em terra. Preparar esses relatórios é um exercício de futurologia que envolve análises de economistas, cientistas políticos, especialistas em computação e engenheiros. Suas conclusões são sempre bem próximas da realidade.    

HISTÓRIA PARECIDA

Boeing e Airbus surgiram como fruto da fusão de outras empresas menores, absorvidas por não conseguir  arcar sozinhas com os custos crescentes da atividade. A Boeing era um pequeno fabricante até a II Guerra Mundial, quando recebeu de Washington contratos enormes para produzir milhares de  bombardeiros pesados B-17 e B-29. Findo o conflito vieram os anos da Guerra Fria, que garantiu à Boeing novos contratos importantes na área militar, como os dos bombardeiros B-47, B-50 e B-52. Nesse esforço ela foi beneficiada com tecnologia de ponta capturada da Alemanha Nazista vencida, depois também usada para iniciar uma família de jatos comerciais de grande porte que fez sua fama (B.707, B.727, B.737 e B.747).    

Bem projetados e agressivamente comercializados eles permitiram ao fabricante destronar os concorrentes norte-americanos Lockheed e Douglas. O primeiro desistiu do mercado civil de aeronaves pesadas e o segundo foi absorvido pela Mc Donnell, transformando-se na Mc Donnell/Douglas, que depois acabaria também sendo engolida pela rival Boeing.

A Airbus nasceu na década de 1960, fruto de um esforço dos governos do Velho Mundo que iniciavam um movimento de recuperar através da união de esforços a liderança industrial norte-americana. Juntando empresas estatais e privadas da França, Inglaterra, Alemanha e Itália, foi possível criar um gigante de capital misto que entrou no mercado com o jato de fuselagem larga A300 e seus derivados.

Foram necessárias três décadas para reduzir a participação estatal no gigante a uma percentagem aceitável dentro da filosofia da União Européia, hoje uma espécie de Estados Unidos da Europa. E se a Airbus teve inicialmente aporte importante de capital governamental, sua rival do outro lado do Atlântico foi apoiada por grandes encomendas  governamentais, acompanhadas de investimentos em programas de desenvolvimento, instalações fabris e maquinário industrial.

Hoje os dois rivais operam como empresas comerciais, embora os governos interessados ainda ajudem na  hora de influenciar clientes externos a contratos que garantem milhares de empregos e bilhões em impostos.

PRODUTOS CIVIS

Boeing e Airbus são também como pontas de icebergs industriais, já que do seu sucesso depende a sobrevivência de num sem número de fornecedores de partes, peças e componentes, em dezenas de países.

Isso significa que literalmente todo o mundo deseja que os dois continuem crescendo e prosperando. A falência de qualquer deles significaria um literal caos na indústria aeroespacial do mundo. E essa interdependência é tão grande que as vezes até os dois unem esforços para evitar choques que poderiam abalar sua liderança.   

A Boeing oferece hoje algumas famílias de bem sucedidos jatos comerciais, como a Nova Geração do bi-reator de fuselagem estreita B.737, de maior sucesso mundial, além do B 767 e seu derivado B 777, bi-reatores de fuselagem larga e grande autonomia. Tem também em produção o famoso “Jumbo” B 747, hoje da versão 400, e se prepara para lançar no mercado o B 787 e a nova geração do B 747. A disputa de mercado levou-a a interromper a produção do B 575 e agora indica o fim do B 767, que será sucedido pelo B 787.

Sua rival Airbus desativou as linhas de montagem dos modelos A 300 e A 310, e está reduzindo a cadência de produção do A 340, mas mantém a todo vapor a família A 320 (rival do B 737) e o A 330 (concorrente do B 767), enquanto inicia a fabricação em série do A 380 (rival do novo B 747) e se prepara para fabricar o A 350 (que concorrerá com o B 777 e com o novo B 787). Numa palavra: cada um dos dois rivais oferece uma gama completa de aeronaves com capacidades que vão de 130 até 450 passageiros. São modelos tão bem sucedidos que se de um momento para outro Boeing e Airbus saíssem do mercado, os três maiores fabricantes mundiais de turbinas aeronáuticas (Pratt & Whitney, Rolls Royce e General Electric) iriam literalmente à falência!    

20 ANOS À FRENTE

Os estudos anuais publicados recentemente traçam um quadro da demanda mundial de aeronaves comerciais  nas próximas duas décadas. O “Market Forecast” da Boeing previu que entre 2006 e 2026 a economia mundial cresceria 3,1%, o número de passageiros aumentaria 4,5%, o movimento das empresas aéreas aumentaria 5% e o da carga aérea cresceria 6,1%. Nesse cálculo entraram apenas aviões de mais de 100 passageiros. Considerando a desativação das aeronaves mais velhas – e portanto anti-econômicas – e a adequação a esse crescimento, as empresas aéreas comerciais precisariam entre 2007 e 2026 de 28600 novos aviões, no valor somado de US$ 2,8 trilhões.

A idade média da frota global de aeronaves comerciais, hoje na marca dos 12,1 anos, também não está equilibrada mundialmente. Na região Ásia/Pacífico e na Europa é de 9 a 10 anos, na América do Norte de 11,5 anos, no Oriente Médio de 12 anos e na América Latina, de 15,6 anos. Bem mais velhas são as frotas da África (18,6 anos) e da União dos Estados Independentes (antiga URSS), hoje com 21 anos de idade média. Esse fator indica também onde a compra de aeronaves novas é mais urgente.        

O “Global Market Forescast” da Airbus define que a frota mundial de 13284 aeronaves de passageiros usadas  em 2006 vai crescer para 28534 em 2026, e que a de aviões de carga aumentará no mesmo período de 1696 para 4249, dos quais 877 novos de fábrica e os restantes modelos de passageiros adaptados para a nova função. Novamente, nos cálculos, foram consideradas apenas aeronaves para mais que 100 passageiros. Outra previsão da Airbus é a de que vai crescer a importância das mega-metrópoles, cidades de mais de 10 milhões de habitantes, polarizando cada vez mais a economia, os passageiros e a carga. Esses “super hubs” vão exigir aeronaves de grande porte na sua interligação.

Essas avaliações globais da Boeing e da Airbus destacam sempre a América Latina e especialmente a América do Sul, onde segundo a Airbus haverá somente um mega hub (São Paulo), no Brasil. Na realidade, o  grupo europeu tem razões para se orgulhar do seu esforço comercial na região, onde há 15 anos estava praticamente ausente e no dia 31 de março passado tinha  305 aeronaves nas frotas de 22 operadores, que têm ainda 248 encomendas a receber. Sua rival Boeing renovou esforços e hoje conseguiu novos clientes importantes, como a brasileira Gol, segunda maior transportadora da região.

CALCANHAR DE  AQUILES

O exame desse quatro parece indicar que os dois gigantes vão muito bem, e que seus passos são matematicamente calculados, sem erros. Mas eles também sofrem problemas, e alguns por suas próprias faltas. Nos últimos dez anos o mundo assistiu a três crises envolvendo os dois gigantes. A primeira foi uma literal “indigestão” administrativa e industrial, que a Boeing sofreu quando “engoliu” sua poderosa rival local McDonnell/Douglas.

Firmas com estrutura diversas, linhas de produtos concorrentes e filosofias de trabalho muito diferentes, a fusão das duas foi muito dolorosa e dela resultou a saída de linha de todos os modelos McDonnell/Douglas de jatos (DC-9, MD.11). A segunda crise sofreu a Airbus, mais recentemente, quando lançou-se ao mesmo tempo no desenvolvimento de dois jatos muito caros, o A380 e o A350. Na indústria, excesso de otimismo não combina com sucesso, e para sair do atoleiro a gigante européia teve de trocar diretores, refazer todo o projeto do A350 e redesenhar muita coisa no A380, e para não perder vendas foi forçada a praticar o “down pricing” (preços subsidiados), um mal do qual só agora ela está conseguindo se livrar.

Sua rival aproveitou as desventuras do excesso de otimismo da Airbus para lançar o projeto B780, um aparelho tecnologicamente muito avançado que segundo a Boeing compensaria com tecnologia de ponta a economia de escala do enorme A380. Novamente, otimismo demais. Para conseguir uma aeronave como  a prometida, e tão depressa como propunha, a Boeing foi forçada a montar um esquema global de sub-contratos. Repassou tantas responsabilidades que perdeu o controle do programa.

Tentou dar um salto qualitativo grande demais, e fracassou: o primeiro B787 ainda não começou a voar. Está quase dois anos atrasado e toda a engrenagem global de sub contatos teve de ser revista. E enquanto o esperado B 787 não voa, a Boeing é forçada a melhorar seu B 777 para que ele possa enfrentar a concorrência do novo Airbus 350, agora uma aeronave “com pés no chão”.

Mas se todos esses atrasos causaram dores de cabeça na  América,  na Europa  provocaram atritos entre os sócios franceses e alemães, enquanto os espanhóis ganharam importância no grupo, e os britânicos remanejaram sua participação. Ou seja: Boeing e Airbus levaram longe demais o seu duelo, e mesmo poderosos como são não estão imunes às escorregadelas de percurso. Mas ninguém se engana. Nenhum grupo industrial rivaliza com eles, ou pode desafiar sua hegemonia. O que vão fazer ou não vai ser definido por cifrões, nos próximos 20 anos.

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