100 anos de aviação
Oficialmente o homem aprendeu a voar há um século. Para a FAI – Federação Aeronáutica Internacional, que tem sede em Paris e registra os recordes aéreos de todo o mundo, Alberto Santos Dumont detém as duas primeiras marcas oficiais de altitude e distância, em 1906, com seu avião XIV Bis. O brasileiro foi também um dos seis primeiros, no mundo, a receber o brevê de piloto. Mas embora até erguendo monumentos ao pioneirismo do nosso aviador, a FAI sempre destacou o caráter oficial de Santos Dumont, e chamou atenção para o fato de que ele executava suas experiências “comme if faut” (como devem ser feitas), na presença de cronometristas, juizes e da Imprensa. E até o nosso pioneiro admitiu nas suas cartas, “que foi viver em Paris porque a capital francesa era, na virada do século XIX, o centro das atividades dos aviadores”. O grande mérito de Santos Dumont foi assim o de escolher o lugar certo, na hora certa, para suas pesquisas.
Mas voar é um sonho muito mais antigo de poetas e escritores, que imaginaram aventureiros como Ícaro, que desafiavam as alturas. Só que entre a ficção e a ciência existe distância e foi preciso esperar pelo avanço tecnológico para que esses sonhos começassem a virar realidade. O balão de ar quente foi o primeiro meio seguro de vencer as alturas, e logo o hidrogênio – gaz mais leve que o ar – substitui o ar quente. Quando Santos Dumont chegou à Europa os aviadores tinham dois desafios pela frente: dirigir seu voo na altura e direção desejadas, e voar em máquinas mais pesadas que o ar. Nosso pioneiro enfrentou e venceu ambos, mas não foi o único a fazer experiências nesse sentido.
Em apenas quatro anos, entre o curto voo do XIV Bis em 1906, no Parque de Bagatelle, e 1910, mais de cinquenta aviadores subiram aos ares, e muitos pagaram com a vida a sua ousadia. Quase todos os seus experimentos eram empíricos, feitos sem uma sustentação científica adequada, como os planeios encosta abaixo do alemão Otto Lilienthal, as decolagens catapultadas dos irmãos Wright, nos Estados Unidos ou as tentativas européias do francês Clement Ader, que decolou (e se acidentou), em 1897, num protótipo bimotor (a vapor) batizado “Avion III”. Outro americano, Samuel Pierpont Langley, realizou decolagens de cima de um barco no rio Potomac, com seu “Aeródromo” de duas hélices. Sorte dele, os voos terminaram em mergulhos na água.
A primeira década do século foi uma época quando as tentativas sonhadoras deram lugar a experimentos baseados na ciência. E com esses sucessos a aviação se vulgarizou. O número de aviadores cresceu, e também a variedade de máquinas aéreas, sempre atraindo multidões. Basta lembrar que em outubro de 1909 foi realizado em Reims, na França, uma “Grande Semaine d´Aviation” com a presença de dezenas de aeronaves, e que no fim de setembro de 1910 milhares acorreram para ver, em Milão (Itália) outra feira aérea semelhante. Berlim (em 1909) e Los Angeles (1910) organizaram outros desses encontros, sempre com dezenas de participantes e elevados prêmios em dinheiro.
Entre 1910 e 1914 a atividade aeronáutica cresceu ainda mais rapidamente, impulsionada pelo avanço da tecnologia. Henri Coanda experimentou o primeiro avião a jato, em 1910, mesma época em que subiu, na Inglaterra, a primeira aeronave com asas em flecha (o Dunne D-5). Mas os modelos de maior sucesso na época foram o “Demoiselle” de Santos Dumont, cuja planta, vulgarizada pela revista americana Popular Mechanics, foi copiada por muitos, e o “Antoinette” do francês Leon Levavasseur, também de grande sucesso.
Se os pilotos ainda eram corajosos heróis, como Louis Bleriot e Roland Garros, a aviação tomou consciência de suas possibilidades. Em 1913 Jules Vedrines voou de Paris ao Cairo, via Constantinopla, e Prevost superou a marca dos 200 km/hora com o seu Deperdussin. Também na França Legagneux subiu até 6.120 metros enquanto na Alemanha Reinhold Boehn permaneceu em voo, sem pousar, por 24 horas. Outro alemão, Erlrich, elevou-se a 8150 metros. E então, em 1914, começou a Primeira Guerra Mundial, que mudou a aviação.
Cavaleiros do céu
Leves, frágeis e ainda pouco seguros os aviões foram logo de início empregados pelos combatentes para vigiar os movimentos do inimigo. Primeiro pela observação visual e depois com câmeras fotográficas e rádio, os aviadores passaram a fornecer aos generais um tipo de informação atualizada até então de responsabilidade da cavalaria. Essa vigilância era perigosa e os aviões passaram a ser combatidos com canhões antiaéreos e por outros aviões. Acabou o tempo dos pioneiros e sportsmen, e os soldados passaram a combater no céu. De um lado franceses, ingleses, italianos e depois norte-americanos. Do outro alemães, austro-húngaros e turcos, disputaram o controle do ar, usando máquinas cada vez mais sofisticadas. A metralhadora passou a equipar os aviões desde 1915 e depois surgiram os bombardeiros. E vieram os caças para interceptar os bombardeiros. Usando aviões Gotha e zepelins enormes os alemães bombardearam Paris e Londres, e quando a guerra terminou os ingleses tinham colocado em serviço os quadrimotores Handley Page V-1500, capazes de atacar Berlim com meia tonelada de bombas.
Mas foram os caças que mais atraíram a opinião pública. Pequenos monoplaces armados com uma ou duas metralhadoras eles disputaram o domínio do céu em milhares de duelos, que geralmente terminavam com a morte do ocupante da máquina abatida (o paraquedas só foi adotado em 1918). As velocidades passaram dos 150 para os 250 km/hora e o metal começou a substituir a madeira e a lona na estrutura das aeronaves. Pilotos como o alemão Manfred von Richthofen (80 vitórias aéreas) e o francês Guynemer (53 vitórias) ganharam renome mundial. O avião passou a vigiar comboios em alto mar, transportar feridos graves e lançar panfletos de propaganda sobre o inimigo. Principalmente, aumentou de número. Mais aviões, mais pilotos! Em 1914 a França tinha 134 pilotos brevetados. Em 1918, quase 7.000. Durante toda a Primeira Guerra os países combatentes fabricaram 200 mil aviões, cujos motores passavam, em alguns casos, dos 400 Hp de potência.
Aviação comercial
Finda a guerra a geração de pioneiros tinha se aposentado, substituída por jovens pilotos profissionais, que desejavam ir mais longe e fazer mais. E esse “mais” incluía os negócios, o transporte de passageiros e malotes postais. Começava a era dos grandes raides aéreos a locais afastados e surgiam as primeiras companhias de aviação comercial. O Atlântico Norte foi vencido. Em 1919 um bimotor inglês Vickes Vimy voou com Alcock e Brown entre a Terra Nova e a Irlanda e pouco depois o zepelin britânico R-34 ligou a Escócia a Nova Iorque, e voltou. O primeiro homem a cruzar sozinho o Atlântico Norte foi o norte-americano Charles Lindbergh. No Atlântico Sul, no começo dos anos 20, uma esquadrilha italiana comandada por Ítalo Balbo viajou da África ao Brasil e depois subiu até os Estados Unidos. E a tripulação brasileira de João Ribeiro de Barros voou no hidravião “Jahu” da Itália a São Paulo.
Usando velhos bombardeiros modificados as primeiras companhias aéreas passaram a ligar com regularidade as capitais da Europa, enquanto nos Estados Unidos o Governo instituía um serviço postal transcontinental e os “farm boosters” organizavam demonstrações aéreas em sítios e vilarejos. O avião deixou de ser um mistério e virou meio de transporte. E, rapidamente, novos modelos foram criados. Em 1920 voou na Itália o hidravião experimental Caproni 60, para 100 passageiros, e passados poucos anos a companhia inglesa Imperial Airways colocava em serviço os De Havilland Hercules e os Armstrong Argosy, para transportar 40 pessoas entre Londres, a Índia e a Austrália. O dirigível italiano Norge sobrevoou o Polo Norte. No Atlântico Sul o enorme Dornier X (30 passageiros) alemão partiu da Europa, passou pela África e visitou o Brasil.
Começaram também as competições desportivas, onde o interesse de fabricantes e governos logo substituiu o esforço de entusiastas particulares. A Copa Schneider, realizada anualmente, mostrou como em poucos anos a velocidade máxima dos hidraviões passava dos 200 aos 500 quilômetros por hora. E enquanto a tecnologia aeronáutica avançava, cresciam as tensões políticas na Europa. E quando em 1939 estourou a II Guerra Mundial, o avião estava pronto para cumprir melhor seu papel como arma. O que Santos Dumont temia aconteceu finalmente.
A morte que vem do céu
A subida ao poder do Partido Nacional Socialista (Nazista) na Alemanha permitiu a organização de uma poderosa Luftwaffe, com 3000 aviões. Foram esses aviões de ataque (Stukas), de bombardeiro (Heinkel 111, Dornier 17 e Junkers 88), e de caça (Messerschmit 109 e 110) que permitiram aos germânicos realizar a chamada Guerra Relâmpago e tomar toda a Europa continental. No Pacífico o Japão também se armou, e para compensar as grandes distâncias organizou uma poderosa força de porta-aviões, capaz de destruir, num único ataque, o poderio aeronaval dos Estados Unidos no Havaí.
Mas a mesma aviação que trouxe as vitórias iniciais aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) também determinou sua derrota final, usada por inimigos capazes de fabricar mais e melhores aeronaves. Na Europa a Real Força Aérea deteve a Luftwaffe na Batalha da Grã Bretanha, e no Pacífico a Aviação Naval norte-americana parou o avanço japonês na Batallha de Midway. Um esforço gigantesco formou pilotos e produziu aviões em quantidades nunca antes vistas. Só o Brasil fabricava um avião de treinamento por dia em 1944 enquanto as fábricas inglesas liberavam um novo caça Spitfire a cada 35 minutos. Os russos usaram a madeira para fabricar milhares de aviões de combate baratos e a máquina industrial norte-americana empregou mulheres, jovens e deficientes físicos para produzir caças e bombardeiros para seu uso e para os países aliados. Só o Brasil recebeu 200 treinadores PT-19!
A metalurgia, a química dos combustíveis e a eletrônica cresceram explosivamente. Surgiu o radar, apareceram os primeiros aviões militares a jato, foram testados os primeiros assentos ejetáveis, enquanto os mísseis subiram ao céu. Em 1939 os caças voavam a 550 km/h.Em 1945 passavam dos 800 km/h. Os bombardeiros de 1939 voavam a 300 km/h e levavam 2 toneladas de bombas, mas em 1945 já havia modelos que podiam transportar 10 toneladas a 500 km/h. Até que quadrimotores B-29 da Força Aérea dos Estados Unidos arrasaram Nagazaki e Hiroshima com bombas atômicas. A aviação mudara a guerra. Já não funcionava mais o princípio da “retaguarda”. O avião tornou a guerra global!
A época do voo barato
Na verdade, nunca houve paz real desde o fim da II Guerra Mundial. Conflitos localizados na Coréia, na Indochina e no Oriente Médio continuaram sendo definidos (ou influenciados) pela superioridade aérea. Mas se o avião cresceu para destruir, também avançou para ligar as distantes partes do mundo, e com milhares de transportes “sobras de guerra” surgiu depois de 1945 uma aviação comercial ativa e ambiciosa. Só no Brasil havia, em 1950, mais de 200 bimotores Douglas DC-3 em uso.
Vieram os quadrimotores para 80/100 passageiros, ligando cidades afastadas. E esse aumento de capacidade ajudou a baixar o preço das passagens aéreas, que se tornaram coisa normal. Mais gente pedia voos mais rápidos e os jatos surgiram para isso. Primeiro os Comets ingleses e os Caravelle franceses, e depois os Boeing 707 e os Douglas DC-8 americanos, levando 130/150 pessoas a 900 km/h. Mas também apareceram jatos militares cada vez mais velozes, bem armados e caros. Um caça Spad, de 1918, custava US$ 2,5 mil. Um F-51 Mustang de 1945 era construído por US$ 25 mil. Um caça F-86 Sabre que lutou na Coréia era comprado por US$ 250 mil e um Phantom II usado no Vietnam custava US$ 2,5 milhões. Em 1980 o preço normal de um jato de combate atingia US$ 25 milhões e um jato comercial era negociado por US$ 100 milhões.
Cada vez mais alto
A tecnologia aeronáutica se alimenta do avanço de outras ciências, e o crescimento delas não tem limites aparentes. Cada vez mais depressa, mais alto e mais longe, foi sempre a regra do desenvolvimento. Em 1959 os Estados Unidos usavam o avião experimental X-15 para atingir Mach 5 e subir acima dos 100 km, em pleno vazio do espaço! Mas ele se destinava a ensaios. Caças como o russo Mig-25, o inglês Lightning e o norte-americano F-16 voavam normalmente acima de Mach 2,5 enquanto o franco-britânico Concorde cruzava distancias intercontinentais a Mach 2 com 110 passageiros a bordo.
O alumínio foi substituído pelo titânio, pelos materiais compostos e pelo aço na construção de aeronaves, que para construir os robôs e computadores substituíam os operários humanos. 1945-1985 foi o período da chamada Guerra Fria, quando americanos e soviéticos tentaram ganhar vantagens políticas mundiais pela posse de armas aéreas cada vez mais aperfeiçoadas. Para isso organizaram Forças Aéreas de milhares de aeronaves de capacidade nuclear. Acabaram prevalecendo o bom senso e os interesses econômicos, mas o esforço resultou em avanços notáveis nas aeronaves. Dos pequenos monoplaces dos anos 30 os helicópteros cresceram até gigantes capazes de transportar mais de 100 pessoas, ou erguer cargas superiores ao próprio peso. A partir dos anos 60 veículos tripulados, descendentes das aeronaves experimentais, passaram a viajar pelo espaço e chegar à Lua.
Sem limites para o alto
O mundo passou a ser cortado por linhas aéreas regulares, num céu sem limites, mas regulado por organismos internacionais. Tradicionais fabricantes europeus juntaram forças para criar gigantes como a British Aerospace e a Airbus Industrie, enquanto nos Estados Unidos dezenas de pequenos fabricantes foram absorvidos em meia dúzia de grupos poderosos, capazes de investir bilhões de dólares no aperfeiçoamento de modelos novos. A antiga URSS fragmentou-se mas alguns dos seus fabricantes famosos sobreviveram ao fim do comunismo e passaram a disputar o mercado, onde o número de utilizadores era cada vez maior. E novos partners entraram nesse mercado, como o Canadá e o Brasil. Hoje, estão em serviço milhares de aviões comerciais e as previsões são de que seu número deve continuar crescendo, para atender a demanda. Cursos de formação de pilotos existem em todo o mundo, e grandes universidades formam engenheiros aeronáuticos. O que surgiu como um esforço de pioneiros individuais, virou um grande negócio. E os sonhos dos que se aventuraram um século atrás viraram realidade. Foram superados pela realidade.
Homenagem do Invoz a Roberto Pereira
O Invoz, em parceria com Marisa Lucchiari, assessora de Roberto Pereira durante 30 anos e detentora dos direitos autorais de seu acervo, republicará as matéria escrita por esse grande profissional.